A ATUALIDADE DO YOGA

A ATUALIDADE DO YOGA

O significado que um conjunto de ideias e proposições assume ao surgir em um determinado contexto, depende de algumas características fundamentais que vamos examinar a seguir. Quando aquilo que é dito pretende responder questões que as ideias vigentes já responderam suficientemente, esse dizer não apresenta nenhuma relevância, e por isso mesmo não desperta interesse em ninguém. Torna-se redundante, pois diz o que todos já sabem ou pensam saber.

Um discurso pode também propor reflexões e respostas para questões que a cultura vigente ainda não formulou como problema. Respondem o que ainda não foi perguntado. A questão é irrelevante no contexto dos pressupostos vigentes, ou o problema existe e ainda não foi percebido. Em qualquer das duas hipóteses o que se diz não interessa a ninguém naquele momento.

Outra possibilidade para uma proposição é que ela responda questões relevantes para uma determinada cultura naquele momento, mas na sua formulação não enuncie claramente o problema que com ela se resolve. Então mesmo tendo a capacidade de responder suficientemente questões fundamentais, essas reflexões podem não ser reconhecidas como tal. Por falta de clarificação do problema e sua relação com o que está sendo dito.

Quando, porém, um sistema de ideias resolve plenamente aquilo que aparece como um desafio não respondido pela cultura vigente, e ao fazer expõe o problema em todas as suas nuances, dizendo inclusive como a nova proposição o dissolve, torna-se então um dizer que efetivamente atende aos interesses e necessidades da comunidade naquele momento, e será reconhecido em sua importância.

Diante do que foi dito, o que nos interessa perguntar é, em que condições o discurso do Yoga se torna capaz de atender questões essenciais que a mentalidade vigente em nossa sociedade já não dá conta de responder? Por discurso do Yoga aqui se quer dizer as ideias e argumentos que fundamentam a sua prática. Aquilo que é apresentado como justificativa para propor e explicitar o que o Yoga é.

Perguntamos então: o Yoga é capaz de aparecer no mundo de um modo absolutamente pertinente, formulando claramente o que ele próprio é, e as possibilidades que se abrem a partir disso? E mostrando a partir da compreensão clara das circunstâncias históricas; dos vários aspectos que caracterizam a condição humana atual, mostrando que pode desvelar uma nova perspectiva, um novo estado de ser, onde respostas adequadas ao agora podem surgir de forma espontânea e criativa.

Considerando o Yoga em seu aspecto essencial, originário, parece não apenas possível, mas inevitável que ele seja apresentado de modo pertinente para o atual momento histórico. No entanto, é inegável também o fato de que o Yoga, esse modo de ver e viver a vida, tem sido muitas vezes ensinado de modo parcial, quando não adulterado quase completamente.

 

ESQUECIMENTO DE SI E DEPENDÊNCIA PSICOLÓGICA

É possível identificar que um dos traços essenciais, típicos da sociedade contemporânea é o esquecimento de si mesmo, o esquecimento do ser que se é. Ser que aparece como existência em todas as suas faces: profissional, familiar, social, religiosa…mas, que antes de tudo é si mesmo.

O esquecimento de si é sustentado pelas múltiplas ocupações com as faces citadas e outras tantas, e o vazio que decorre desse esquecimento busca ser preenchido com o que pode resultar das múltiplas ocupações. O esquecimento do ser que se é, é o terreno fértil onde florescem muitos aspectos, considerados problemas característicos da nossa cultura.

Uma condição problemática, por exemplo, é a ausência de um sentido de identidade bem estruturado psicologicamente dentro do universo das relações; e a também ausência de conexão com um nível de identidade incondicionado, que se auto sustente. Isso deixa o ente humano em uma luta para afirmar a si mesmo no plano social, familiar e profissional, construindo relações onde há uma patológica dependência da opinião e da aprovação dos outros.

O modelo de identidade que se forma no contexto descrito é determinado pela mentalidade social dominante. Surge um ente humano medíocre, que justifica a sua falta de coragem e ousadia para ser ele mesmo, dizendo que a sociedade o obriga a ser como ele é; que não seguir o modelo aprovado pela mesmice coletiva o tornaria um estranho no mundo….e assim por diante. A escolha de uma profissão, o estilo de vida, os valores, são todos determinados de fora para dentro. Mesmo a subjetividade é constituída de condicionamentos e padrões culturais. A tendência é se formar um humano completamente de segunda mão; que vendeu sua alma. Nunca atendeu ao que seu próprio ser lhe tenha dito, porque sempre esteve surdo para si mesmo. O resultado disso é desastroso.

Uma comunidade de entes atormentados, em busca de pequenas alegrias, mendigando da existência mesmo que seus cofres estejam cheios. O que vemos então nesse rápido olhar a nossa volta e dentro de nós? Ausência de valores humanos fundamentais capazes de gerar respeito aos demais seres do planeta. Violência, corrupção, drogas. Estresse, depressão e outras disfunções de saúde; desequilíbrio social, desastres ecológicos. Todos problemas que sempre existiram em alguma escala, e que nas condições doentias atuais se agravam e ganham proporções quase alarmantes. E a mentalidade geradora dessa situação, que como já foi dito, existe há muito tempo, não é capaz de responder adequadamente a isso. Nunca foi. E o é muito menos agora.

O que seria necessário para que surjam as condições onde uma resposta adequada seria possível? Considerando que a condição dominante até hoje não foi suficiente, se pode pensar que uma alteração essencial de percepção poderia abrir uma nova perspectiva que descortine um novo modo de ver o que é. O Yoga considera que isso é possível e necessário. É preciso um salto quântico de consciência. Uma revolução da percepção. Um novo modo de ver o mundo. E isso implica uma outra dimensão do ser. Não há respostas satisfatórias na dimensão de consciência vigente. E esta ausência de respostas satisfatórias causa uma grande inquietação.

É preciso perguntar então de que modo o Yoga se insere nesse contexto histórico? O Yoga faz algum sentido hoje? O Yoga é capaz de abrir novos espaços de percepção e possibilidades de compreender a realidade de forma mais ampla ? Ou é puro modismo; ou se transformou em mais um das dezenas de sistemas para alinhamento corporal. E existencialmente continuaremos os mesmos de sempre ?!

 

UM OLHAR QUE VISLUMBRA O NOVO

O ente humano, em geral se acha identificado com os papéis, profissional, familiar, social e religioso. A noção de si mesmo se estrutura nos conteúdos temporais oriundos desses papéis. Quando, por alguma razão, acontece um olhar que percebe fora desses papéis, se revela o vazio existencial seguido muitas vezes de crise. Esse olhar não vislumbra, em um primeiro momento, o ser que ele essencialmente é. Vê apenas a falta de sentido dos papéis que ocupa nas relações, e se depara com a ausência de sentido do seu próprio mundo. Essa situação cria um assombro que inquieta, e muitas vezes assusta. Esse susto quando afeta patologicamente pode gerar enfermidades como ansiedade, depressão, pânico, diversos tipos de neurose e suas compensações. Pode também estimular uma atividade desenfreada, e muitas vezes até desesperada de busca de sentido para a vida e levar à outras formas de desequilíbrio.

Uma disfunção muito comum se expressa no esforço para manter, pela rigidez e o conservadorismo, um sentido artificial e até moralista dos valores e costumes que nutriam os papéis nas relações até então. E mesmo não fazendo mais sentido, são cultuados, por não se saber o que pensar e o que fazer. O receio de mudanças reforça o apego ao velho. Outro modo de expressão desse mesmo desequilíbrio aparece nas atitudes contestadoras que buscam quebrar regras e convenções, cultuar originalismos e transgressões, mas que no fundo ainda fazem parte da mesma velha estrutura. Ainda é a vigência do esquecimento do ser.

O Yoga convoca à um olhar para fora dos papéis sociais e familiares, com os quais ainda permanece a identificação, mesmo que, como já foi dito, já não façam mais sentido; e convida à iluminação do horizonte onde se vislumbra o ser que se é. O sentido do Yoga como o vislumbre do ser para além dos papéis, só é possível, no entanto, quando esse olhar já se deu para o vazio desses mesmos papéis. É preciso já ter olhado para fora dos pressupostos vigentes, para saber que eles são insuficientes. Daí surge a crise e com ela o convite para a redescoberta de si mesmo. É preciso então a disposição adequada para o ver que apreende o ser em si mesmo e em todas as coisas, e que pode acessar uma nova dimensão de consciência e uma nova maneira de viver.

O Yoga, para quem viu a insuficiência daquilo que constitui a identidade vigente, é o percurso do desvelamento do ser que se é. É o caminho de plenificação de si mesmo. Para quem se mantém cultuando aquilo que vigora mesmo sem fazer sentido, por conformismo ou medo de admitir que o mundo em que vive está em chamas, para esses o Yoga é apenas exercício, e serve para trazer mais conforto dentro da “mesmice’ e mediocridade da mentalidade dominante.

Podemos perguntar então se é possível ao Yoga abrir os olhos de quem o pratica, tornando possível ver além do discurso vigente? Ou se é apenas mais uma opção reacionária para anestesiar os efeitos da decadência. E uma possível resposta é: pode abrir os olhos, sim! Ou o “olho divino” capaz de ver o que é. Mas nem sempre isso acontece!

Esse “abrir os olhos”, por sua vez, quando de fato acontece pode ser de dois modos: um é quando pelo próprio discurso instaurador de um novo sentido, o Yoga confronta as ideias vigentes e responde as questões para as quais a mentalidade dominante não fornece respostas satisfatórias. E a outra maneira é quando pelas alterações de percepção que as práticas yogis provocam ocorre uma mudança de perspectiva que descortina novos horizontes, e com isso novos questionamentos e descobertas.

As práticas do Yoga trabalham a partir e sobre a estrutura energética, corporal e psíquica estabelecida em cada ente humano. Essa estrutura humana carrega em si, o traço do discurso vigente, em forma de valores, crenças, padrões de reação emocional e mental, condição do fluxo energético nos meridianos e chakras, padrões respiratórios, hábitos posturais e condição da estrutura de tensões musculares e emocionais crônicas, que sustentam e são sustentadas pelo falso ego, o eu temporal O Yoga promove uma intervenção deliberada e precisa sobre essas estruturas, e provoca com isso significativas mudanças que repercutem na visão de mundo e de si mesmo que até então vigorava. Com isso se torna possível um olhar para além do já pensado, e se pode vislumbrar a falência do conhecido na tarefa de dizer o que as coisas são.

A ação do Yoga, desestabilizando a estrutura da mentalidade vigente, manifesta sua face Shivaista de destruição do mundo já feito, liberando a possibilidade de recriação de sentido. Essa recriação de sentido ocorre pelo acesso à unidade, a origem instauradora do real, e manifesta a função Brahmanica de criação do mundo. Assim o Yoga aparece em duas forças essenciais: destruição e criação! Morte e renascimento!

Uma vez instaurada a criação, age a força de preservação, Vishnu! Brahma, Vishnu e Shiva precisam atuar em sincronia perfeita para que a vigência do mundo seja sempre com sentido. A constante criação, preservação e destruição ocorrendo no seu momento apropriado resultam em uma articulação sempre viva do real. É necessário estar alerta para uma tendência humana de auto asseguramento que pode se tornar desmedida e confundir preservação com conservadorismo e cristalização. Pois com isso se perde o contato com a necessária desconstrução e recriação de sentido desde a origem, e surge o esquecimento do princípio instaurador que fundamenta a realidade. O medo que provoca e sustenta a desmedida auto preservação provoca em seguida o próprio esquecimento do ser.

O Yoga pode, portanto, abrir ao olhar humano o espaço onde o ser habita e é. Nessa apreensão do ser, o ente humano acessa a dimensão originária de si mesmo, e se torna a própria totalidade da vida. Vive a partir do que é. É autônomo e livre. Realizou, e sempre de novo se põe a caminho da plenificação de si mesmo.

O Yoga se torna reacionário quando, em sua transmissão, usa-se o discurso estereotipado, “já sabido”, e que não dá conta de responder as questões que o movimento da vida nos apresenta. Ou ainda, quando a prática dos exercícios obedece a critérios equivocados, não concorrendo para a desestabilização dos condicionamentos e padrões que sustentam a mentalidade vigente e o falso ego.

A justificação das práticas yogis com argumentos que se baseiam unicamente nas comprovações científicas dos seus efeitos, não faz o percurso de principio, de apropriação de sentido, e por isso leva pessoas a práticas terapeuticamente eficazes, mas carentes de fundamento. Não atingem o essencial na crise humana hoje, que é a ausência de significado e de conexão com o Si mesmo. As práticas de Yoga nesse caso mascaram os sintomas negativos de uma mentalidade vazia e em crise. O que se encontra então nas práticas não é a luz que dissolveria a crise e desvelaria o ser e o sentido de si mesmo, mas um subterfúgio a mais para diminuir o desconforto. Isso apenas fornece resistência para que se continue, por mais tempo ainda, na estrutura doentia sem sentir tanto os efeitos nocivos dessa condição.

 

O YOGA VIVO

O Yoga é o que fazemos dele. Em si mesmo absolutamente é transcendental. Inacessível a tudo o que se possa pensar ou fazer. Ao ser pensado, e dito desde esse pensar, já não é o Yoga mesmo. Ele aparece na articulação decorrente da sua apreensão. O Yoga aparece na linguagem, desde uma apreensão que ocorre naturalmente pela aproximação e acesso de quem o articula e diz. Como ocorre esse acesso e apreensão vai determinar a forma que o Yoga tomará e a sua legitimidade ou não. Se a apreensão ocorre no vazio luminoso da ausência de tempo e de ego, ele aparece vivo, sendo ele mesmo. Isto só acontece no silêncio que nenhum pensamento pode produzir. Só ocorre na escuta atenta que caracteriza a Meditação. Por isso Shri Patanjali diz ”Yoga é a parada das ondas mentais”. E pode-se acrescentar, é a ausência do si mesmo baseado no tempo.

Quando a apreensão ocorre a partir do que outros já disseram que ele é, e a partir de um eu já completamente comprometido com seus próprios conteúdos condicionados, o que surge é um Yoga de segunda mão. Um pseudo Yoga; mumificado. Um fóssil desnaturado que vai desde a megalomania materialista dos falsos mestres até os piedosos sectários que se fazem passar por religiosos.

O Yoga vivo só aparece quando o acesso ocorre desde a ausência do eu. Quando a fonte originária do Yoga, ela mesma, surge no espaço luminoso e infinito que se abre com a dissolução da identidade temporal. Então é possível compreender que quando existe alguém praticando não existe Yoga!

Se a formulação dada ao Yoga causa estranheza e nos coloca diante do fato de que então não sabemos o que é Yoga, é quando esse dizer cumpriu plenamente a sua função. Pois assim não pensamos já saber. E é nessa disposição que podemos perguntar “O que é isto, Yoga? E nos colocarmos então à escuta, silenciosamente, esvaziando-nos de nós mesmos, para deixar o Yoga ser o que ele é onde antes havia o “nós”. Ele surge precisamente na quietude desse escutar e ocupa o espaço da identidade do ser. Quando se pensa que sabe já se deixou de saber. O Yoga é vivo e sua fonte é infinitamente criativa. É sempre novo e atual ao ser disponibilizado por quem o apreende desde a origem. E é sempre outro, ainda que seja sempre ele mesmo! Esta é a eterna atualidade do Yoga.

O estado de Yoga, ele mesmo, não está a disposição de todos de qualquer maneira. È necessário um alinhamento adequado de intenção, de foco, de disponibilidade. Na disposição adequada o Yoga se mostra plenamente, pois já está sempre aí. Mas é preciso completa abertura e vulnerabilidade para que ele possa afetar, transformar, provocar a morte e o renascimento do sentido de si mesmo e do mundo. A Tradição Yogi pode assim realizar aquilo que é o seu propósito fundamental: O desvelamento do Si mesmo. O acesso humano ao sagrado! O humano é Divino! Aham Brahmasmi! Shivo Ham! Sat Nam!

         Akal Muret Singh

Related Posts

Enter your keyword