DESVIRTUADAS VIRTUDES E AUSENCIA DA ALMA
Escutei uma conversa sobre espiritualidade e desenvolvimento interior. O discurso entre outras coisas dizia, com um certo desdém, que conexão com a alma e o Infinito eram insuficientes para uma vida livre e plena. Seria essencial cultivar e desenvolver virtudes.
Essa afirmação nascia de uma compreensão conceitualmente incompleta e em certo sentido caricata do que é virtude, do que é o Infinito e do que é a alma. E, claro, ausência de uma vivencia direta do que isso pode significar.
Pretender que virtudes venham de alguma outra esfera da estrutura humana que não a Alma é um engano que pode deformar o processo de autodesenvolvimento. É preciso ver e dissolver o engano.
“Infinito” é uma expressão que se refere à instancia originaria de tudo o que existe. A Fonte sem causa da força que transborda sendo mundo. Dessa dimensão originária, a consciência pura em cada ser, é que nascem, como expressão espontânea, as chamadas “virtudes”. Do latin “virtu”, força. Virtude é, portanto, a manifestação da força originaria da Alma. Do incondicionado em cada ser. Virtude só brota desde o Infinito. Ou não é virtude!
Nessa perspectiva fica evidente o equívoco e inevitável inconsistência da adesão a padrões; da ingênua tentativa de adequação a estereótipos de virtude. Isso é simples adestramento moral e constitui um grande e desastroso auto engano em nome de suposta espiritualidade.
A virtude nesses casos é apenas “similar”, e, portanto, pura imitação. Assim como no mercado popularmente chamado “camelódromo”. Nesses lugares mercadorias que “parecem ser, mas não são” estão à venda. Eles dizem por exemplo, que um determinado produto é de tal ou qual marca importante e de alta qualidade….mas que não é o original, apesar do nome, é apenas “similar”. A palavra para isso é falsificação.
Assim também são as virtudes forjadas pela adesão externa a padrões preconcebidos de comportamento. Elas as vezes até parecem estar ali, mas não estão. Não se sustentam. São como a casa construída na areia ao invés de construída nas bases firmes da rocha. A base, no caso das virtudes é sempre a fonte de onde elas emanam. E a fonte é a identidade Divina em cada humano. Ao se reconhecer Divino todas as virtudes fluem sem esforço. Fora disso é o próprio vazio da ausência da alma buscando preenchimento em desvirtuadas virtudes. Tentativa de sentir aquilo que naturalmente sentiria se estivesse na consciência plena.
Sendo assim o foco, a estratégia adequada é desconstruir as amarras que se ancoram na noção ilusória de si mesmo. E que ao mesmo tempo a sustentam. Essa estrutura de identidade constituída de memorias, por sua carência e ignorância se move de um modo tal que encobre a Presença Divina, a Alma, o Infinito de onde todas as virtudes nascem. Remova as nuvens que a luz do sol aparece. Ela já está sempre aí!
Conceber a possibilidade de virtudes espirituais é um passo além da mesmice e do conformismo. Mas está muito longe de ser algo diferente disso. Pode ser apenas uma variação do mesmo e não alterar as condições de fato. Tende a criar conflito, antagonismo interno frustração e culpa. Isso é preferível ao sono hipnótico em que estava? Pode ser! Mas é insuficiente para uma mudança efetiva.
É preciso alterar a condição das áreas da consciência para que algo de qualidade diferente possa fluir através delas. Criar um contexto de alta energia pranica, vitalidade psíquica transbordante, elevar a frequência vibracional e fluir de um modo criativo ao invés de reativo. Isto é essencial. Ou seja, criar o contexto apropriado para que as qualidades da alma possam aparecer. Estabelecer o antecedente para que o consequente se torne possível. Fazer votos e promessas de ser diferente e mais elevado é ingênua e pretensiosa bravata moral se, ao mesmo tempo, não forem criadas as bases de onde as qualidades divinas apareceriam.
Propor regras rígidas de comportamento e padrão mental sem fornecer as condições que tornariam isso possível pode ser considerado até um tipo de abuso moral. Pode criar muita culpa; levar a um senso fantasioso de superioridade ou gerar desesperança e abrir caminho para um possível niilismo. Ou ainda, mais adiante, quando as expectativas fantasiosas se desfizerem levar a uma atitude cínica que se justifica e se nivela pela mediocridade dos outros.
Porque alguém propõe algo assim tão enganoso? Por desconhecer o modo como as coisas ocorrem ou ocorreram nele mesmo, se de fato nele houve alguma mudança? Como modo de trazer outros para a mesma cilada na qual ele próprio caiu? Ou sinceramente equivocado pretende salvar os outros deles mesmos e nutre assim uma certa megalomania narcisista em nome do espiritual. Ou, quem sabe ainda pretende trazer todos os demais para o seu próprio nível com suas peculiares tensões, auto opressão e repressões em nome de um suposto ideal espiritual.
Compreendemos aqui, portanto que desconsiderar o poder da fonte originaria de tudo, o Infinito em cada ser, como se estar na conexão com essa instancia sagrada não fosse tão relevante, fosse pouco para uma vida livre, plena e ancorada no Divino…. pensar dessa forma mostra que não se tem a dimensão do significado dessas palavras. Mostra uma ideia superficial, pobre, indicando ausência de uma experiência direta do sagrado.
Quando se vai além do entendimento intelectual dos conceitos que se referem ao Divino e ocorre de fato uma vivencia além das palavras, isso muda radicalmente a dimensão de onde vem a cognição, o afeto e a vontade. Então, sem nenhum esforço, toda ação manifesta as qualidades Divinas. Em todos os contextos e relações. A consciência deixa de se guiar por referências e condicionamentos culturais, mesmo que eles se pretendam espirituais. O comportamento, a partir daí, nasce de uma dimensão fora da mente e do ego. Nasce da causa de todas as causas, o Infinito, a Alma, a Presença Divina. Brotam, portanto, da verdadeira Identidade humana: Sat Naam! Shivo Ham!Aham Brahmasmi!
Existem ao menos dois contextos onde palavras e ideias assumem ares de realidade e alimentam as esperanças e necessidades de atribuir sentido para si mesmo e a vida em nome de uma suposta transcendencia.
Um desses contextos são os conceitos filosóficos psicológicos que apontam para uma realidade sagrada e atemporal. O outro constitui uma espécie de idealismo moral romantico que concebe virtudes e estabelece parametros do que deveria ser o modo de pensar e agir do humano.
Sobre esses dois pairam dúvidas e justificadas suspeitas. Isso porque todo conceito é na melhor das hipóteses admissão de possibilidades.
Conceber uma dimensão de completude e bem aventurança espiritual onde o humano se reconheceria Divino pode ser uma projeção fantasiosa sobre si mesmo onde os anseios se realizariam plenamente. Quando a partir de conceitos como esses alguém tenta se colocar nessa posição; sentir, pensar e agir como se assim fosse ele cria uma tremenda tensão emocional e mental. Isso porque junto com concepções desse tipo uma série de qualidades divinas são consideradas parte dessa natureza espiritual e o indivíduo a partir de então tenta incorporar essas qualidades. Mas o detalhe é que isso não passa de uma ideologia espiritual com consequencias comportamentais e não uma realidade existencial efetiva. Por isso as tais qualidades espirituais não tem como surgir pois a realidade psicológica vigente não corresponde a ideia concebida sobre o que se é. Isso pode gerar muitas distorções no modo de avaliar a si mesmo. Pode levar a uma baixa auto estima ou a uma megalomania nascisista de auto adoração.
A causa desse tipo de distorção estaria nas ideias filosofica espirituais e concepção de padrôes de virtude ? Possivelmente não!
As noções de que o humano pode vivenciar uma dimensão interior livre das poluições do ambiente a sua volta, uma dimensão de completude, clareza, sabedoria sempre existiu na historia humana. E foi uma possibilidade afirmada por grandes seres humanos que demonstraram uma sabedoria, um nível de vinculação afetiva com todos os seres e qualidades surpreendentes, belas, inegavelmente admiraveis por qualquer outro ser humano independe de cultura, crença ou até mesmo da época em que viveu ou esteja vivendo. É dessa fonte de clareza e de consciência que surgiram afirmações sobre as mais altas possibilidades humanas. Foi da vivencia direta de alguns poucos humanos na historia em épocas e locais diferentes.
Ao admitir mesmo como hipótese essas possibilidades, um indivíduo humano se abre para elas. Tem então alguma chance de sair de uma visão restritiva sobre si mesmo e a vida e se deixar aberto a um novo campo onde potencialidades podem ser atualizadas. Isso, mesmo não sendo suficiente, está longe de ser completamente irrelevante.
É admissível conceber que a partir do momento que um humano vivencia e se torna essa dimensão livre e sagrada ele manifestará na sua vida um nível absolutamente especial, sábio e quem sabe até mesmo irrepreensivel no seu modo de ser no mundo. Daí decorrem uma série de virtudes que, se concebe, esse ser humano naturalmente iria demonstrar em sua vida. Seriam as chamadas “qualidades espirituais”. Coisa que em muitos exemplos da história dos humanos aos quais nos referimos antes como a fonte dessas afirmações sobre a possibilidade humana de se reconhecer divino, em muitos desses casos essas qualidades eram evidentes a todos, ou a quase todos em sua época.
Então poderíamos nos perguntar porque isso criaria problemas para os demais humanos ? Saber que isso é possível não é inspirador e interessante ? De fato não parece haver problema aí. E sim! Isso pode ser inspirador. Então porque essas ideias se tornaram um atraso para o humano em direção a essas possibilidades mais altas, quando poderiam ao contrario instigar à vivencia direta dessa dimensão livre e incondicionada ? Porque, muitas vezes, mais atrapalham do que ajudam ?
O problema se é que podemos chamar assim, ou equívoco é antes de mais nada o modo como se estabelece a relação com essas ideias. E não elas mesmas.
O humano em seu estado precário de condicionamentos e noção inconsistente de si mesmo se apropria desses conceitos para tentar criar um atalho; um faz de conta em relação a essa dimensão sobre a qual ele tem uma ideia apenas caricata e a utiliza para atribuir sentido e importancia a si mesmo na medida que alega estar interessado nisso que se afigura como uma intenção especialmente nobre e louvavel: um ser humano se envolver na superação da sua condição de ignorancia e se aproximar de uma patamar considerado mais elevado e simbolo de certo grau de superioridade em termos de sabedoria e moralidade.
A questão é que o eu está se apropriando de uma ideia para se afirmar diante de si mesmo e dos outros. Ele quer antes de mais nada sofrer menos a falta dessa dimensão do sagrado em sua vida. Provocar em si mesmo e nos outros uma certo tipo de admiração. E tem nessa possibilidade concebida um recurso para isso. Preencher o próprio vazio com uma idéia nobre. Tentar ser do modo que seria se nele tivesse acontecido uma revolução estrutural de consciencia pois então ele estaria de fato vivendo essa instancia sagrada do ser. Mas não está! E não estando, todas as suas supostas virtudes às quais ele faz um certo esforço para demonstrar que tem… ele de fato não sabe o que elas são. Apenas imagina e tenta se colocar lá. Forçando a si mesmo, especialmente quando está sob o olhar dos outros. Socialmente se apresenta como adepto disso e daquilo supostamente espiritual. Auto engano puro! Inconsciente de que se engana ou enganando conscientemente a outros para tentar se nutrir de um eventual reconhecimento. Essa abordagem de adequação a modelos de comportamento como ja foi dito, é adestramento. Condiciona ao invés de educar. Condicionamento prende. Educar é intrinsecamente libertário.
O modo como essa consciencia e seus inevitáveis sintomas, que são as tais virtudes, poderiam autenticamente acontecer precisam ser urgentemente considerados. Sem isso tudo parecerá artificial, falacioso e fantasioso e cairá no descrédito. Isso de fato já está acontecendo. Precisamos resgatar essa possibilidade humana do sequestro que sofreu pela carencia e precariedade do eu que a reconheceu como uma possível salvação da sua própria miséria e insignificancia.
A pergunta é: será possível efetivamente uma verdadeira mudança de eixo do sentido de identidade ? Sair do campo gravitacional do tempo que sempre se atribui sentido a partir do passado e futuro e ser uma realidade atemporal e livre ? Existe mesmo uma possibilidade de possibilitar o que é concebido como uma realidade existencial que se expresse espontaneamente no viver cotidiano mais prosaico até as instancias mais sutis do ser ? Nisso nos interessa de fato mergulhar. E quem sabe desaparecer nesse mergulho! Desaparecendo aquilo que tenta se preservar surge o que não tem início e nem fim.
Portanto, não interessa a quem de fato se coloca nessa viagem ao desconhecido, não interessa adesão a padrões e estereótipos pseudo morais espirituais. Para quem percebe todos esses jogos nos bastidores e por tras das cortinas desse estranho espetáculo humano agravado pelas ondas de auto engano new age e suas mil e uma variações, apropriações culturais e nocivas combinações, quem “viu” de fato tudo isso ja desmontou o espetáculo e pode começar sériamente, com leveza e lucidez andar de um outro modo. E nesse outro modo o caminhar avança na medida em que desaparece o caminhante. Ele não coloca mais novas fantasias. Ao contrário, retira todas as máscaras e véus até que nenhum rosto haja a não ser a própria Vida originando a si mesma a cada momento!
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