A FILOSOFIA COMO UM ACORDO COM O LOGOS.

A FILOSOFIA COMO UM ACORDO COM O LOGOS.

 

                     A FILOSOFIA COMO UM ACORDO COM O LOGOS.

   Aquilo que a filosofia é ao surgir nada tem a ver com o acúmulo de informações e conhecimentos a respeito da diversidade de coisas que aparecem na existência. A filosofia é, antes de tudo, uma disposição para se por à espreita e escutar o logos, o dizer que se dispõe e é a própria realidade aparecendo sempre.

 O que será tratado aqui é como se apresenta a filosofia em seu surgimento, tendo como base os fragmentos de Heráclito.  A filosofia como uma concordância com o logos, desde o escutar e dizer o mesmo que ele diz; e o estranho de que esse dizer ao ocorrer já se perde, e sempre de novo é preciso à ele retornar. A filosofia sendo, portanto uma atitude de completa abertura, de disponibilidade para a apreensão da realidade.

Duas afirmações aparecem muitas vezes de diferentes modos no pensamento grego. A primeira é de que a realidade é posta ao ser dita, no discurso. Ou seja, que a linguagem põe, articula a realidade. Esse dizer é tanto mito quanto logos. É o dizer dos deuses, ou o dizer dos homens que escutam o logos, e em quem o logos fala. Esse discurso é então o que dispõe o aparecimento da realidade.

A segunda afirmação presente no discurso grego é o de que “Tudo é Um”. A unidade que à tudo unifica, o Um que, no entanto  ao dizer a si mesmo como logos já traz consigo a multiplicidade. Mas que mesmo aparecendo como diversidade sempre é também a unidade. Sem esse Um subjacente, a multiplicidade seria sem fundamento e ordem.

Esses dois aspectos são pontos essenciais para compreender aquilo que constitui a filosofia em seu surgimento.

Naquilo que entre os gregos se costuma chamar de período mítico, a realidade surge a partir do dizer desde uma dimensão divina que se mostra no que aparece.

Aquilo que o homem vê aparecer é o divino. Ao homem não é dado o poder de controlar esse constante aparecer da realidade. Ele se encontra completamente envolvido nesse jogo de surgimento das aparências. Essa situação provoca o espanto, que é desde onde o pensar encontra as condições propícias, e mais ainda as condições de necessidade para o seu acontecer. Esse espanto se assemelha à um estado de suspensão, de ausência de sentido, onde o homem se vê em meio às circunstâncias, e é provocado à perguntar sobre o fundamento do que aparece como realidade.

Perguntar sobre o fundamento, ou sobre as origens, não é tratar de algo que ocorre no início de um processo e é então deixado para traz, desaparecendo desse mesmo processo como um evento inicial que apenas faz parte do passado.

Investigar as origens é tratar das coisas também no modo como elas se dão agora, pois na concepção grega o que vem primeiro, sempre se faz presente e ordena tudo o tempo todo. Sendo assim essa disposição para o pensar que surge no espanto, é o que constitui o modo de ser da própria filosofia. Tanto que ao perder isso morre a filosofia, pois ela então deixa de se fundar sempre de novo como é preciso que ocorra sempre. Os homens ao pensarem que sabem o que as coisas são, não mais se espantam. Perdem assim a disposição na qual a filosofia se torna possível.

A palavra grega arkhé designa aquilo de onde algo surge e se torna arkhein, o que impera. O espanto é assim o arkhé da filosofia. O que está no início e impera sempre em seu interior.

No contexto onde surge à filosofia se torna necessário, o que se pode chamar de esforço para pensar; ou que se pode chamar também de um escutar especial. Um escutar que apreende desde dentro aquilo que se escuta. Desse esforço para pensar, e desse escutar, surge um falar, um modo de dizer que caracteriza a filosofia. É um discurso que se expressa de maneira conceitual, no sentido de que permite ao que escuta em concordância, o apropriar-se do que é dito. É um dizer, portanto, que causa espanto e convoca à um escutar especial.

A filosofia é ao mesmo tempo um escutar e um modo de falar, que ocorrem em determinada disposição: a sintonia com o logos, o Um que é em tudo.  Então é fundamental o escutar, o estar em acordo com o logos, aquilo que desde sempre é. “Não sabendo auscultar, não sabem falar” diz Heráclito, fragmento 19.

O que é esse esforço para pensar? O esforço para pensar, não é um se ocupar cognitivamente com temas ou objetos de pensamento sobre os quais então se atua na tentativa de analisar em seus pormenores para desvendar. O esforço de pensar não é um pensar ativo. É mais um estado de plena atenção sem objeto específico, semelhante àquele de alguém que adentra um território desconhecido onde à qualquer momento algo pode acontecer, e ele então se move com toda a atenção, em uma atitude de abertura para a percepção do que venha a aparecer.

Normalmente há certa pressa em responder com um entendimento às circunstâncias que surgem. Uma necessidade de segurança pelo saber. Surge então um pensar reativo, mecânico, que cria uma versão incompleta da realidade. É como um filme projetado na tela dos acontecimentos, que revelam muito mais os esquemas e condicionamentos daquele que projeta, do que a realidade que ali se mostra. É o “entendimento próprio e particular” de que fala Heráclito em contraposição à apreensão do Um em Tudo, do logos que é Com-Um. À esse entendimento que constitui as opiniões, Heráclito se refere no fragmento 70 dizendo “(as idéias dos homens são) jogos de criança”.

O esforço para pensar implica paciência, um deixar a realidade se mostrar no movimento do que ela é. É um receber que é também apropriação. Um estar em acordo; ser com o que é.

É esse esforço para pensar, o terreno onde se dá o surgimento da filosofia. Isso possibilita o que no grego é homologein, dizer o mesmo, nesse caso dizer o mesmo que o logos diz; corresponder ao logos, ser com o logos.

Desse homologein há o manifestar do saber Um é Tudo ou Tudo-Um. No dizer de Heráclito: “O pensar reúne tudo”. Isto significa que o homem já não se confunde com a multiplicidade, e estabelece sintonia com a unidade.

No acordo com o logos vigora o que é Com-Um. O homem não se encontra mais na clausura do entendimento próprio e particular, realizando aquilo que Heráclito coloca como necessidade, ao dizer no fragmento II “( torna-se necessário seguir a con-juntura) mas enquanto o logos vive em con-juntura, a massa vive como se tivesse um entendimento próprio e particular”.

O pensar que apreende o Um em tudo pode ser dito também como um escutar o que o logos é e diz. Ao escutar o logos o homem é acordado no que desde sempre já é: o Um! “Os homens acordados tem um mundo só que é Comum ( enquanto cada um dos que dormem, se voltam para o seu mundo particular)” diz o fragmento 89 de Heráclito.

A apreensão do Um em tudo, evidentemente não exclui o múltiplo. É na diversidade das aparências que o Acordado escuta o Um que em tudo se mostra e se esconde. A realidade aparece como unidade e diversidade e é por se enredar  no diverso que o homem se esquece do Um. Então vive no sono, na desmedida do múltiplo. “Surdo” para o Um!

Cada ente humano é também o palco onde ocorre o jogo do Um e do múltiplo. A harmonia, a justa medida de aparecimento do Um e do múltiplo no homem o coloca na sintonia com o Um mesmo em meio ao múltiplo.

A disposição que constitui o esforço para pensar ou o escutar especial é um se deixar ir para dentro do que se pensa ou se escuta. Nas palavras de Heidegger em seus comentários sobre os fragmentos de Heráclito “Quando teremos ouvido? Te-lo-emos, quando fizermos parte daquilo que nos é inspirado”. É um fazer parte daquilo que é o dizer escutado; daquilo que é o pensamento pensado. Não há separação entre o escutar, o que é escutado e aquele que escuta; entre o pensar, o que é pensado e o pensador. Isto é a plena manifestação da realidade Tudo/Um. Mais uma vez o “pensar reúne tudo”.

O que se realiza no vigor do homologein  é o que no grego se diz sophón , sábio. Sábio é o que aparece nesse concordar com o logos. E nada tem a ver com conhecimento intelectual. Este é apenas uma triste e rudimentar imitação do que é sophón. O conhecimento tende a se tornar um disfarce para a ignorância. “Muito saber não ensina sabedoria, pois teria ensinado á Hesíodo e Pitágoras, à Xenófanes e Hecateu”, afirma Heráclito no fragmento 40, fazendo assim uma clara distinção entre erudição e sabedoria.

Heidegger pergunta “que significa sábio? Significa apenas o saber dos antigos sábios? Que sabemos nós de um tal saber ? Se este saber permanece apenas um ter visto, cujo ver não é aquele dos olhos sensíveis, como não o é, o ter ouvido, um escutar com os órgãos auditivos, então provavelmente coincidem o ter escutado e o ter visto. Eles não significam um simples captar, mas um comportamento. Qual ? Aquele que acontece na morada dos mortais.”

Portanto sábio se relaciona com ação, com viver, habilidade no agir, no fazer. Jeito para fazer; ser bem disposto. Isto expõe o fato de que a filosofia definitivamente não é pura abstração ou prestidigitação com palavras. É mais um pensar sintético que analítico.

O sábio é o jeitoso, o hábil, o que sabe fazer, é aquele que manifesta sabedoria prática e que, portanto desemboca em comportamento. Então, aquilo que decorre do escutar o logos é no dizer grego  phronesis. Prudência; saber no agir. Não é “muito saber”. É Ser-Sabedoria!

Um fato estranho em tudo isso, no entanto, é que o homem ao estabelecer o acordo com o logos não tem nisso nenhuma garantia ou permanência. Esse concordar ao ter acontecido já se perdeu, e é preciso à ele sempre de novo retornar. Ao pensar que sabe o homem já não sabe. Ao lembrar, já se esquece. Ao repetir uma verdade já está mentindo. È preciso à cada instante redescobrir, escutar de novo o dizer daquilo que nunca se repete, sendo mesmo assim o que desde sempre já é.

O homem só está no acordo ao escutar. Nem antes, nem depois. É o que diz Heráclito no fragmento 1: “com o logos, porém que é sempre, os homens se comportam como quem não compreende tanto antes como depois de já ter ouvido”

O surgir desse acordo é como um raio na madrugada, mostrando o que as coisas são, e desaparecendo para novamente aparecer. “O raio conduz todas as coisas que são” diz Heráclito no fragmento 64.

O escutar, o pensar atento que ocorre desde o espanto, é sempre de novo necessário. É no presente ativo que ao ocorrer o escutar, se manifesta o homologein e o sábio. Ao se considerar o presente, ele já é passado, já não é.

O Inesperado, o raio, sempre surge, mas não se sabe aonde, nem quando, nem como, e na verdade não se sabe nem mesmo se surgirá. Mas ainda assim se “não se espera, não se encontra o inesperado”. Para o Inesperado não há caminhos. Nenhuma via o pode acessar. No entanto, ele já está sempre aí. Esperar o inesperado é se por à escuta do que o logos diz e é agora.

É de repente que o raio brilha. Então é preciso sempre a atenção, o escutar, o esforço para pensar.

A filosofia é o acesso que sempre de novo se dá ao que o logos diz e é. Surge então o sábio que age com habilidade, e que “jeitosamente” se move no mundo.

                                                                                              Akal Muret Singh

Bibliografia:

Heidegger, Martin. Conferências e Escritos Filosóficos. São Paulo, Abril Cultural.

Heidegger, Martin. Comentários sobre os fragmentos de Heráclito, Coleção Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural.

Leão, Emmanuel Carneiro, Os Pensadores Originários, Petrópolis,RJ, Vozes.

           

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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