O HOMEM E A AUSÊNCIA DE MUNDO

O HOMEM E A AUSÊNCIA DE MUNDO

                        O HOMEM E A AUSÊNCIA DE MUNDO

 Este texto discute a crítica de Ortega y Gasset, expressa no  livro “Em torno à Galileu”, em relação à caracterização da essência do homem como  homo sapiens  e como animal racional. E então analisa a fórmula que ele propõe. Mostra também como se estabelece a relação entre esta fórmula que pretende designar o modo de ser do homem e da vida humana, e a noção, formulada pelo mencionado autor, de “crise histórico-filosófica”.

 O texto comenta ainda a definição heideggeriana do fazer filosófico em “O que é isto, a Filosofia?” e mostra que relação pode se estabelecer entre esse fazer, a noção de crise histórico filosófica trazida por Ortega e a essência do homem como “lide”.

 O humano, sendo e admitindo esse fato fundamental  que é sua própria existência, exerce o viver e poderia sempre, a qualquer momento, deixar a vida. Mas não o faz. E nessa resposta afirmativa a si mesmo como vida acontecendo trás consigo no entanto uma insegurança básica; um receio profundo de ser nada, ou mais precisamente de nada ser.    

A incerteza e volatilidade de sua própria existência lhe move em um anseio de assegurar para si mesmo, a vida. Esse viver ocorre sempre em meio a fatos, pessoas, acontecimentos, momentos aparentemente sempre diferentes.

É nessa impermanência circundante que o homem se vê na ignorância primordial a respeito de quem ou do que ele é. E sua reação automática, o seu impulso, é o de interpretar as circunstâncias que o envolvem. Dar um sentido a tudo. Isto pode ser visto até como um tipo de defesa, uma forma de se sentir relativamente seguro diante da vida e do seu próprio ser. Esta segurança, aliás, nunca lhe estará plenamente assegurada, segundo alguns Pensadores Orientais, enquanto o homem não experienciar a morte e o não-ser. “Morrer antes de morrer”. Sem isso o viver se torna apenas um movimento para se afastar da possibilidade do morrer, e a morte lhe acompanhará como uma sombra.

Sobre essa base de medo, a vida se torna conflito, luta para sobreviver, não apenas no sentido de manutenção da existência física, o que é natural e necessário. Mas um esforço para sobreviver enquanto alguém que é, em meio ao movimento incessante e sempre novo das circunstâncias.

O autor do texto, “Em torno a Galileu” rejeita a definição do homem como “homo sapiens”. E por uma razão muito clara: a inteligência humana até hoje não se manifestou como uma faculdade de tão superior excelência, que tenha realizado de forma plena os objetivos à que se propôs, e de uma maneira tal que a inteligência possa servir para caracterizar o ser humano. Isso significa que o fato básico não é que o homem sabe, ou pode saber, como sugere a expressão “homo sapiens”.

A situação básica realmente é a de que o ser humano, pela sua própria condição de ignorância a respeito de si mesmo e no anseio de se auto garantir sendo, precisa, necessita saber. Então a caracterização que melhor exprime a condição humana é a tarefa, a “lide” com a qual o humano, sem nenhuma dúvida, desde sempre, se encontra envolvido.

Ortega diz que o homem não busca conhecer porque é portador de faculdades cognoscitivas, mas que é exatamente por precisar conhecer que utiliza os meios de que dispõe para isso. E diz ainda: “se a inteligência humana fosse de verdade o que a palavra indica (capacidade de entender), o homem teria imediatamente entendido tudo e estaria sem nenhum problema, sem lide penosa pela frente”.

O fato fundamental de que viver é lide, não está nas mãos do homem decidir. Mas as respostas que constituirão a expressão dessa lide, sim. O homem a cada situação, por ser chamado a decidir e manifestar uma ação, é levado à se perguntar o que as circunstâncias são nelas mesmas. Isso porque as circunstancias ocultam o ser que elas são ao se mostrarem. O humano é assim arrastado para a pergunta sobre o ser das coisas e de si mesmo. As respostas à estas questões constituem o mundo construído pelo homem ao viver, ao fazer lide.

No entanto, mesmo sendo essa lide a condição existencial básica do homem e aquilo que o define, desde que surge ente vivo, em nenhum momento esteve sem mundo. Ou seja,  sem um conjunto de respostas preparadas para dizer o que as coisas são. Isto porque o homem ao nascer, nasce no mundo dos seus pais, da família, da sociedade e das pessoas em diferentes “etapas de mundo”. É um herdeiro do passado. A herança é aquilo que constitui o conjunto de pressupostos vigentes sobre o que é o homem e as coisas na sua época. Os paradigmas e prioridades que vigoram e condicionam o pensamento e a ação humana naquele determinado momento histórico.

Portanto, em cada época, o homem nasce em um mundo já interpretado. Com seus valores, crenças, com um roteiro mais ou menos pré concebido sobre o que ele deve fazer e ser, no contexto dos acontecimentos. O recém chegado é recepcionado com um mundo já pronto esperando por ele, e ao qual ele é convidado a se adequar com uma certa pressão e violência até em certas circunstancias. Qualquer dúvida é só perguntar para os mais velhos que já sabem o que o mundo é. É fácil, basta pegar o manual e consultar. Às vezes a vida apronta novidades, coisas que não estavam previstas, mas algumas pequenas modificações em um ou outro aspecto das próprias idéias e reações, em geral serão suficientes, e a continuidade daquele estado de coisas se mantém, com uma infinidade de variações possíveis sobre a mesma estrutura de convicções radicais.                                                                                                         

Na verdade cada geração tende a garantir a continuidade da vigência, com suas modificações de superfície, que surgem para se ajustar melhor às pressões das circunstâncias. A estrutura se alimenta das pequenas novidades, que cada geração orgulhosamente apresenta. As vezes até pretensiosamente, considerando-se muito inovadora.

  O homem se encontra, portanto, com uma rede de respostas para problemas os quais ele ainda nem sentiu e muitas vezes nem sentirá. Pois o fato de já ter respostas lhe protege dos problemas. Mas lhe protege também da própria vida. E quem da vida se encontra protegido está, de certa maneira fora do contato vital, visceral com a nudez das circunstâncias, e não tem problemas, mas tampouco está vivo. É um ente humano de segunda mão, perdido no seu mundo falsificado, onde o sentido da vida lhe foi dado, mas a vida mesma, para a qual o sentido aponta, lhe escorrega, e lhe foge à cada convicção não vivenciada.

 O homem, no entanto, mesmo quando não aceita as ideias e valores vigentes em sua época, com elas terá que dialogar, mesmo que seja para contesta-las. E quando é assim poderá então: ou realizar a vivência direta do sentido, antes encoberto, das circunstâncias e de si mesmo e, eventualmente, perceber a pertinência das ideias vigentes, com a absoluta diferença de que agora serão efetivamente suas. Ou constatará a falácia dessas soluções fáceis, e terá a sua própria perspectiva e entendimento do que as coisas são.

 Quando efetivamente as falsas respostas não mais responderem, e se manifestar a angústia pela ausência disso que era um escudo protetor, então o homem estará em condições de se perguntar seriamente sobre si mesmo e a vida. E poderá apreender as coisas diretamente e construir um mundo a partir de si mesmo, com sentido e vigor.

O momento de desestabilização das ideias vigentes em uma época, por estas não mais responderem adequadamente ao fluxo ininterrupto das circunstâncias, e por terem distanciado tanto o homem de si mesmo que ele, de repente consegue se dar conta do seu próprio vazio, isto instala uma crise. Esta crise pode tanto ser de uma determinada sociedade, de um indivíduo humano ou da própria civilização humana.

Ortega coloca na base do surgimento da crise a constatação de que o homem é só. Tudo o que o indivíduo humano sente, pensa, as suas dúvidas, certezas e angústias são dele. Ninguém pode sentir pelo outro. A resolução das angústias, as dúvidas ocorrem sempre dentro e à partir de cada um. Mesmo em uma relação de ajuda como em psicoterapia, o momento da elaboração e dissolução dos conflitos é interna e intransferível. “A vida é de cada um”. O homem precisa estar em íntimo e profundo acordo consigo mesmo, para que algo seja efetivamente capaz de representar ou ser uma expressão legítima do que ele é. Ou seja, possa cumprir a função de lhe dar segurança de que ele é. Não sendo assim o ser humano se desconecta de seu núcleo essencial, e com isso tende a acumular camadas cada vez mais periféricas que lhe distanciam progressivamente de si mesmo.

O mundo criado e sustentado pelas gerações anteriores será incorporado ao novo convidado e constituirá as camadas periféricas que lhe manterão distante de si mesmo, e com isso distante também da necessidade de fazer o mundo à partir de si.

Todo o conjunto de crenças, hábitos, costumes, produção artística e intelectual que constitui a cultura vigente em uma determinada época, incluindo as disputas e contestações entre estilos diferentes, que assumem as vezes aparência de proposições revolucionárias, tudo isso nada mais é que ladainha, pois mantém nas falsas divergências a identidade da vigência. Toda essa parafernália cultural absorvida automaticamente, e incorporada sem descer as próprias raízes de si mesmo, formam o homem alienado, exilado do seu núcleo mais profundo.E é única e exclusivamente a partir desse eu essencial que o ser humano pode construir um mundo próprio, em acordo consigo mesmo, e por isso mesmo válido, ao menos temporariamente, para ele.

 Quanto mais longe se vai de si mesmo nas ondas da cultura vigente, mais vazio se sente o homem. Quanto mais camadas de respostas externas se acumulam, mais longe de si mesmo se encontra, e, portanto, menos legítimo para ele é o mundo. E menos eficiente na tarefa de dar sentido às coisas e a si mesmo. Quando o humano se dá conta da falácia em que se encontra e da falta de sentido da sua própria vida, passa à se sentir  desesperado, agoniado. O seu mundo desaparece precisamente porque não era “seu mundo”. Então se sente oco. Sem mundo. E se vê no abismo do mistério com o qual se recusa a conviver. E se recusa muito mais ainda a saltar. E talvez essa fosse a definitiva solução. O eterno mundo. O não-mundo. Mas o homem precisa sentir que é, criando mundo. Quando sem mundo, entra em crise: intervalo entre dois mundos. Mas quando nesse intervalo, não o vê como tal. Para ele parece ser apenas o fim do mundo e não a possibilidade de um novo.

Portanto, uma cultura surge como resposta para um momento de crise. Mas ao ser instituída como resposta, perde o elemento tempo que poderia lhe conferir atualidade e pertinência. Ao ser absorvida sem a devida apropriação e vivência por parte daqueles que não participaram diretamente do seu início e construção, a cultura se torna lixo. Lixo porque algo já usado, que perdeu o frescor da vitalidade que lhe justificava o uso. Passa então a ser cultuado em belas embalagens e oferecido nas Escolas, Faculdades, e vendido no super mercado das gerações anteriores que querem transmitir seu valores à geração mais jovem, talvez para se defender da necessidade de renovar o seu próprio mundo. Mas isso tudo será jogado fora assim que começar a cheirar mal. E geralmente o mau cheiro aparece na exata proporção em que se tenta substituir a inteligência criadora e o descontentamento com o estabelecido pela racionalidade mecânica e reacionária do conformismo, da imitação e do falso respeito aos mais “velhos”.

O homem socializado, massificado por não ser mais “alguém real”, entra necessariamente em crise e emerge então de novo, o “afã de ser”, a busca de sentido vital para si mesmo e o mundo. Pois o ser humano não é coletivo. É indivíduo. Ou pode sempre ser desde que retorne ao que ele é.

O intervalo entre dois mundos é o momento onde as possibilidades, antes ocultadas pela vigencia emergem. E as soluções prontas aparecem e são oferecidas. Os humanos se mobilizam para abafar a crise com as suas velhas respostas. Propor soluções pré-fabricadas para que sejam aplicadas sobre a crise, é uma sutil manobra para evitar a crise. O que é necessario pensar é que talvez não exista uma solução que venha de fora do próprio caos. E se for assim será preciso observar o caos com toda a atenção, sem desejo de que ele fosse diferente, sem nenhuma ânsia em encontrar respostas. Talvez seja necessário aprender a escutar o que ele é da sua própria boca, e para isso é necessário escuta-lo bem de perto e sem medo.

 A crise de desconstrução de um velho estado de coisas antecede o surgimento de algo novo, e isso vale tanto para situações pessoais quanto para sociedades.

  Durante esse período de caos o ser humano não sabe o que pensar, nem o que fazer diante das circunstâncias. Sabe, porém que as velhas idéias já não servem mais e sente necessidade de rejeitar os padrões que seguia antes da crise se instalar.

 Ortega chama a atenção que o homem durante a crise, as vezes finge acreditar em algo. Doutrinas, ideologias políticas e ou religiosas, estilos artísticos e outras coisas, tentando dar a si mesmo a impressão de estar envolvido com algo visceral e importante. No entanto, o cerne do eu não é tocado. É tudo periferia e diversão. A igreja, o cinema, o campo de futebol ou o bar são nesse contexto, apenas formas de evitar o contato consigo mesmo, com a crise e o vazio do seu sentido de mundo, ou simplesmente o vazio da falta de sentido.

 O ente humano tende a abandonar realmente as velhas fórmulas e os ídolos do passado, apenas quando já sente, mesmo que em forma confusa, indefinida e embrionária, uma nova maneira de ver. Ou seja, quando sente “vir vindo no vento o cheiro de uma nova estação”.

 Por vezes vem à tona a nova visão e provoca entusiasmos, mas é totalmente fugaz, assim como um relâmpago, que repentinamente ilumina o caminho em meio à noite escura – indica, mas não sustenta – não mantém uma noção clara do caminho, do que pensar ou fazer.

 O novo é uma descoberta criadora, não é um arranjo diferente com os mesmos elementos do velho. Pode conter alguns elementos presentes em vigências anteriores, mas re significados e restaurados em sua força vital.

O homem só se instaura plenamente em seu estatuto de humano quando abandona o automatismo das falsas respostas. E falsas não pelo seu conteúdo intrínseco necessariamente, mas basicamente porque respondem o que ainda não foi problematizado e, portanto, carecem de necessidade. É no momento em que a mecanicidade do velho é abandonada e a construção do sentido de realidade se formula a partir de uma experiência real de necessidade, é so então que o homem ocupa a sua posição constitucional, originária, de lide, e é efetivamente humano.

Como diz Ortega o homem precisa “ensimesmar-se”, pois “não há como ser o que efetivamente se é, a não ser voltando para si mesmo e se alojando no ser que se é. Os orientais chamam à isso de meditação, que é a essência do Yoga. Yoga é a consciência de ser o Um. Isso envolve basicamente voltar a atenção sobre si mesmo, sem ideias ou padrões pré estabelecidos sobre o que ele próprio deveria ser. E isso paradoxalmente não significa isolamento. Ao contrário, uma sociedade de homens vivendo distantes de si mesmos, distancia nesta mesma proporção um homem do outro. Para que estejam juntos, a condição é que estejam em si mesmos. Só a partir de si mesmos podem estar verdadeiramente com o outro. Ou seja, com Heráclito, apenas sendo a sua própria singularidade, pode o homem viver no que é comum.          

Portanto “ensimesmar-se” é viver em sociedade a partir do que se é. E é nessa condição que surge uma cultura autêntica, verdadeira, digna de ser chamada humana. Caso contrário o rebanho humano não sustenta o seu mundo, e sempre estará em crise. Ou seja, a crise só surge não porque o homem precisa dela para fazer o seu mundo. Ela surge porque o homem para de fazer mundo, para de ser ele mesmo, esquece de si em seu modo autentico. A crise é o sinal de que ele está dormindo no mundo dos outros e vem lhe convidar a voltar para casa.

A atitude que move o humano em direção à apreensão do ser das coisas e do ser do ente mesmo, é a filosofia. A filosofia ao questionar a respeito do que as coisas são, ou simplesmente escutando aquilo que em uma determinada época, silenciosamente se pronuncia como pergunta, a filosofia pode ser um despertador para aqueles que dormem no embalo das pseudo respostas.

O homem em sua lide constrói mundo na ânsia de penetrar o sentido do ser das coisas e do próprio ente. O concordar com o logos, ou seja, com o que a vida diz sobre si mesma é o ser acordado. Isso torna possível o saber “Tudo é Um”. O concordar com o logos é mais que concordar, é ser no logos. O ser é o ente e o ente é no ser. Nessa apreensão/vivência não há conhecedor, conhecimento ou conhecido como instancias separadas. O homem aspira a esse corresponder  com o logos, esse acordo com o sophon onde o ser/sabedoria é . A filosofia é o se por em movimento em direção a esse acordo que o homem ao surgir no mundo já o perdeu. E ao restabelecer o acordo ainda assim sempre de novo será necessário que isso novamente ocorra. A vida é movimento e ao pensar que o tem ele já se foi.

A filosofia é a atitude do homem na lide de apreensão do Um que se mostra e se esconde na diversidade de suas manifestações.

Heidegger propõe como condição essencial para que se descubra o que é isto, a Filosofia, que esta mesma investigação seja realmente um problema com o qual se depara o homem, e que lhe absorve, lhe envolve e que lhe arrasta avassaladoramente para dentro de si mesmo. É no interior da própria pergunta e do que ela implica que a resposta se mostra. E não como resposta, mas sim como elucidação da própria pergunta.  

Quando se instala uma crise, a partir da ruína dos paradigmas vigentes, a filosofia é aquela escuta atenta e silenciosa das circunstâncias mais ou menos caóticas; das próprias soluções apressadas e de segunda mão que tendem à aparecer. A filosofia é uma reflexão crítica sem o anseio de chegar à conclusões, para que assim possa captar o espírito da angústia do seu tempo, e apreender  pelo seu fazer ou as vezes até  mais pelo não-fazer, apreender o ser do ente e das coisas naquele determinado momento histórico.

A filosofia é uma atitude constante de apreensão do sentido de si e do mundo. Ela reconstrói o mundo a cada momento, pois a vida não para, e o que agora é ao se dizer e se instituir já deixa de sê-lo. A filosofia viva capta o ser do ente e das coisas no momento. Ao transformar isso em sistema fechado ele se torna fóssil, e apenas repete o que jamais pode se repetir sem o preço de matar a si mesmo.

Quando um verdadeiro filósofo investiga e diz à partir da apreensão e vivência o seu dizer manifesta o que é dito. Mas ao repetir o que ele diz já se mente, e se fala então do que não se conhece. A filosofia como um pensar vivo pode “manter” a vigência, pois à torna viva e em movimento constante, sempre mudando e se recriando. Mas ao se instituir perde sua alma. E então se torna um cadáver que apenas nos faz lembrar que uma vez houve vida ali, e que aquilo era o dizer que manifestava o ser das coisas.   

 Existem lugares onde os cadáveres residem e um dos seus lugares preferidos são as universidades. Os coveiros e guardas do cemitério das ideias ali se encontram muito prontos a contar a história dos defuntos, e ao fazer isso parecem usufruir da glória dos seus cadáveres, falando de como eram quando estavam vivos, e de quão importante é saber hoje à respeito do que aconteceu ontem. Quando esse saber do ontem, é colocado como resposta ao hoje, se torna  uma boa maneira de adormecer quem escuta, se é que já não estão adormecidos, o que o fato de estarem ali já indica como suspeita. Se aquele que fala não for coveiro e nem guarda do cemitério, pode avisar à todos que ali só se encontram cinzas e pó, e que o mundo dos mortos já não interessa aos vivos. “Deixe que os mortos enterrem os seus mortos”.                  

A filosofia enquanto movimento em direção ao ser das coisas em momentos de ausência de mundo pode ser um fator essencial na fundação de um novo e pertinente mundo, pois quando exercida ou vivida pôr um homem “ensimesmado” manifesta esse poder de criar mundo que lhe é inerente

 Uma nova época se estabelece, em geral, com a participação de figuras inovadoras que ao realizarem a sua lide em meio à crise, descobrem criadoramente aspectos que formarão uma nova vigência. No surgimento da Idade Moderna temos, como nos mostra muito bem o texto de Ortega, Galileu e Descartes, com este último representando um papel fundamental na decisão histórica que marcou a instauração da era moderna.

Uma das características mais marcantes do Moderno é o posicionamento do homem como um sujeito observador separado da coisa observada. Para o homem moderno o mundo é constituído de objetos à serem analisados, desvendados e acima de tudo dominados para melhor servir aos interesses desse homem interessado na prosperidade nesse mundo concreto.

Dessa atitude surgiu a ciência moderna voltada para o mundo terreno, ao contrário da mentalidade medieval que considerava esse mundo material um lugar de miséria, uma espécie de exílio do qual a morte poderia libertar o homem para o paraíso se assim o merecesse. E quanto menos interesse pôr este mundo, maiores as possibilidades de alcançar a Terra Prometida no céu.

Portanto, para os medievais este mundo é um lugar de penitências, passagem para o além-mundo. O moderno, ao contrário, pretende fazer desse mundo um lugar de conforto e bem estar.  Para isso precisa dominar a natureza. Já o grego clássico se encontra no mundo, mas não para dominar. Flui com o mundo em sua volatilidade, e se relaciona com a vida incorporando em seu viver o sentido da morte.

Entre os gregos no período clássico, a noção de conhecimento não inclui essa idéia moderna de separação sujeito- objeto. O “pensar reúne tudo”. O conhecedor e o conhecido são um só. O homem desenvolve a discursividade, que em certa medida o afasta da experiência originária da apreensão do Um em tudo, mas, apenas em certa medida, pois é o dizer sem perder o contacto com a vivência, e o retorno constante a ela, que constitui a filosofia no grego.

A sucessão das épocas não significa necessariamente a ideia de um melhoramento contínuo e progressivo da humanidade. Para isso teríamos que estabelecer critérios do que é o melhor, e em relação ao que. O que é bom e o que é mau. Esta é uma tarefa extremamente problemática, e felizmente dispensável, embora talvez não precisemos considerar que seja impossível. No entanto, certamente o que nos compete agora, como seres humanos vivendo em uma época de crise, onde o chão do moderno desaparece sob os nossos pés, o que nos cabe é aprender a escutar a angústia e a questões do nosso próprio tempo, e realizar a lide que nos cabe agora. Com isso um mundo autentico e com sentido naturalmente  aparece.

                                                                                                                                Akal Muret Singh

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